O Pungente Fim
de Sir Leaflost
“Naqueles dias, quem soubesse ler no céu o passar das estações saberia que nosso mundo, na sua eterna peregrinação em torno da estrela solar, fazia pouco tempo ultrapassara o equinócio de primavera.”
Este pensamento sussurrado pelo vento trouxera para os lábios do solitário cavaleiro um breve sorriso.
“Peregrinação em torno da estrela solar”, quem nos dias em que agora vivia ainda falaria desta forma? Há muito o gosto pelas letras, pelas frases bem construídas, pela poesia diluída no ritmo da frase, abandonara a cultura do povo.
A névoa da madrugada, na primavera ainda nascente, não se dissipara e já o velho corcel descia a encosta do morro, ladeando os Muros de Adriano e trazendo no lombo um perfeito exemplo da decrepitude que alcança o ser humano na velhice.
O cavaleiro se envolvia em largo manto da cor do musgo velho e encimado por um capuz que encobria por completo a face do homem, mantendo-a mergulhada na sombra e protegida dos olhares de qualquer alma que porventura já houvesse acordado naquela hora.
As ruínas do Muro que outrora tinha proporções de assombrar os passantes, obra do admirável imperador romano para proteger a fronteira norte do império contra os encarniçados bretões, constituíam já naqueles dias tristes lembranças de um passado de glórias.
Conforme o cavalo trotava, um ouvido atento poderia distinguir o tinir de uma cota de
malha que por debaixo da capa ainda guarnecia o torso do cavaleiro. Uma das
lembranças que lhe restara dos tempos de juventude.
Era ele próprio agora quase que um espectro do antigo Cavaleiro garboso e valente.
Fitando os restos do Muro, aquele resto de homem rememorava os dias em que junto a
outros mancebos destemidos e alegres formaram a guarda de elite do Principado.
Joelhos no chão, cabeça baixa, receberam nos ombros os três toques de espada que os
consagrariam na Ordem dos Cavaleiros, sob a proteção de São Jorge.
O Velho Código era ainda seu norte, sua lei, sua profissão de fé:
“Um cavaleiro jura bravura.
Seu coração só tem virtudes.
Sua espada defende o oprimido.
Seu poder apóia os fracos.
Sua palavra só fala a verdade.
Sua fúria destrói a maldade."
Inúmeras batalhas conheceu. Inúmeros corpos foram tocados por sua espada vigorosa. Inúmeras muralhas foram transpostas. Incontáveis noites de gemidos e lamentos foram vividas.
Não possuía agora familiares, todos mortos nas lutas entre os baronatos contra e a
favor da destituição do Principado.
O nome Leaflost foi um dia símbolo de dignidade e honradez. Agora era só mais um nome
dentre os nomes de muitas famílias destruídas e relegadas ao esquecimento. Seu
primeiro nome, Farfaith, nem mesmo ele pronunciava há décadas.
As terras que possuíram foram tomadas e o brasão que encimou os estandartes de
muitas gerações de Cavaleiros familiares, justos, jazia agora enterrado tão
fundo que nem mesmo ele poderia localizar tal sítio funéreo.
A armadura reluzente fora vendida a ferreiros para lhe garantir um naco de pão
vez por outra. A montaria que agora utilizava não era o mesmo audaz garanhão,
já derrotado pelos anos. Mas o melhor que conseguira em troca do arranhado
escudo com estampas em prata. Era o nobre animal tão velho quanto o dono, mas
igualmente valente.
Do passado de honras, tudo o que lhe sobrara foram a cota de malha que ainda
trajava, a espada habilmente envolta em tecidos e dissimulada dentre os
apetrechos dependurados à sela e as lembranças que, além de tudo, lhe
assombravam como um fantasma de riso estridente a tripudiar sobre sua
bancarrota.
Com o fim das guerras nacionalistas e a destruição do Principado em favor de um reino
unificado, mesmo que sob a tirania de déspotas constituídos reis, vira chegar
os anos de trevas e despedira-se dos poucos amigos que jamais voltaria a
encontrar e se impusera como encargo final a missão extrema que a dezenas de
outros Cavaleiros roubara a vida ou a lucidez: encontrar o Graal, o objeto
lendário que diziam faria restaurar o poder de honradez e virtude dos tempos
antigos.
Vivera esquecido e infatigável por longos anos fiel à sua missão. Até que se dissipou
no peito o ardor. Não obtivera sucesso.
No entanto, já no inverno que agora abandonava aquelas terras, cansado e sem
esperanças soubera de uma última pista sobre o paradeiro do Graal quando dormia
pelas ruas em Fornnville.
Ouvira de viajantes de roupas coloridas que ao norte, para além do velho Muro, havia
uma floresta protegida pelas almas de antigos sacerdotes druidas. E bem no meio
dessa floresta, ao lado de um carvalho antigo como o próprio mundo, dissimulada
pelas raízes da nobre árvore, encontrava-se a entrada de um santuário
subterrâneo.
Mas ainda que encontrasse tal lugar, o que diziam ser impossível sem ajuda de quem
muito conhecesse as velhas tradições, dificilmente chegaria até o objeto
sagrado.
Três portais separavam o santuário principal do Sanctum Sanctorum, o local onde
repousa o Graal. Cada um guardado por um espectro de grande poder e majestade.
Por três provas deveria o aventureiro passar. Mas não eram provas que se pudessem
realizar, eram provas de virtudes do que já vivera. Assim, não importa quanto
tentasse se mostrar agora à altura, pois os guardiães sabiam ler a alma e
conhecer o coração e o passado de cada um. E convenhamos, diziam, nenhum
vivente passaria por tais provas pois já não existem homens de tal estirpe.
Mesmo que sentindo a vida se esvair, decidiu-se o antigo nobre por uma derradeira
tentativa.
Por isso chegara até ali, no âmago da Bretanha, palco de tantas guerras sangrentas.
Movido por secreta esperança de não ter vivido em vão.
Já não importava que poder teria o Graal sobre a política e sobre os reinos da Terra.
Queria o Cavaleiro justificativa, algo que desse sentido o tudo que viveu. Que lhe
mostrasse que não desperdiçara toda a existência. Que lhe trouxesse, enfim,
redenção e perdão para a alma cansada. E que pudesse assim descansar a cabeça
sobre as raízes de uma árvore qualquer e morrer em paz.
Ansiava o Graal mais que tudo. Necessitava dele.
Vencida a encosta do morro, alcançara um riacho donde podia divisar, não muito longe,
vetusta floresta de árvores velhas e cores mortas.
Desceu da montaria para dar ao animal algum descanso e permitir-lhe beber da água
limpa do formoso regato. Ele mesmo ajoelhou-se e com as mãos em concha tomou
para si um pouco da água fria e derramou sobre a cabeça. Era um banho e um
batismo. Precisava “limpar o corpo dos rigores da vida e a alma do cansaço da
existência”, pensou.
Atravessou o riacho e livrou o cavalo da carga que o oprimia. Deixou-o solto para o
alimento na relva próxima. Abundante. Enquanto para si tomava os últimos
pedaços de pão e peixe defumado.
"A última refeição", pensava. Era tudo ou nada. Adentraria a floresta e de lá
não sairia. Tinha certeza. Mas tal era um pensamento que não lhe incomodava.
Não temia a morte quando jovem e podia imaginar um futuro de paz e felicidade,
porque a temeria agora?
Noutros tempos lhe animava a convicção que vivendo dignamente encontraria na morte a
porta para o Reino de Luz do Criador. Agora, todavia, ansiava pela Ceifadora
para trazer silêncio e esquecimento à alma desiludida.
Se dormiria a eternidade de coração justificado ou se atormentaria nos rigores dos
remorsos pelas eras sem conta, tais eram os caminhos que encontrava neste
momento de bifurcação no curso de sua história pessoal.
Consumidas as últimas migalhas, despiu-se e banhou-se. Tomou sobre si roupas limpas trazidas
na algibeira e derramou sobre o corpo pela última vez a cota de malha. Resgatou
a espada do repouso em que se encontrava e atou-a à cintura.
A sela e os poucos pertences depositou-os sobre a pedra. Que servissem a outro já que
deles não mais necessitaria.
Afagou o corcel e julgou entrever em seus olhos um laivo de humanidade. Um brilho de
reconhecimento pelo que estava prestes a tentar. Murmurou:
- Bom e velho companheiro, te devolvo a liberdade. Vai e escolhe um lugar para morreres
em paz. Tens a minha benção e a minha gratidão. Eu te pediria o mesmo, se não
fosses um animal. Mas tens sido para mim nos últimos anos amigo tão fiel, que
te levarei no peito como uma lembrança das coisas que valeram a pena ter
vivido. Vai e descansa.
Dois pequenos tapas no lombo do animal e este colocou-se em trote ritmado
acompanhando o curso do riacho, sem olhar para trás.
“Comprendeu-me”, pensou o velho Cavaleiro algo que renascido.
Voltou-se para a floresta e sem titubear entrou na semi-escuridão formada pelas altas e
frondosas copas das árvores.
De lá nunca mais saiu.
Correm lendas sobre o que aconteceu depois. Mas são lendas. E quem nos dias de hoje acredita em lendas?