quinta-feira, 2 de julho de 2020

Um Defunto no Facebook

Um Defunto no Facebook
(uma proposta de postagem póstuma na onipresente rede social)

Prezador Senhor.
Prezada Senhora.
Estimadíssima Senhorita.

Venho, por meio desta, comunicar-vos o meu passamento.

Não é comum que um defunto faça, pessoalmente, o comunicado de seu passamento.

Mas não sou um defunto comum. Fique bem dito.

Devo dizer-lhes, para o bem da verdade, que nunca ninguém de mim ouviu falar em vida. Que o ouçam agora que não mais conto nas estatísticas oficiais.

E que glória é não ser contado nas estatísticas oficiais. Não tenho RG, CPF ou Certificado de Reservista.

Não pode a Receita Federal estimar meus ganhos não declarados, nem as inúmeras e gentis, bondosas mesmo, senhoritas que me serviram buscar refúgio nos tribunais trabalhistas ou de família.

Sequer me localizarão nos seus bancos de dados as Casas Bahia, o Ponto Frio Bonzão, Lojas Americanas ou Netshoes. Tampouco a Editora Abril me localizaria no número de seus assinantes. E isto é já uma façanha.

Todavia, não vou mentir que certas livrarias achariam registros de minha existência, já que livros foram a minha segunda grande paixão. A primeira foram as mulheres, vindo o vinho somente em terceiro lugar.

Ou não. Já que transpassei alcoolizado e talvez ainda não esteja dando a cada uma destas categorias o seu devido valor.

Nos primeiros momentos no Além lembrei-me do filme do Chico Xavier. E pensei se tudo aquilo seria verdade. Cheguei a entrever um trono resplandecente onde alguém se assentava.

Exclamei em êxtase: - Deus?! Chico?!

Qual nada. Saiu da luz um anjinho nerd meio com cara do Mark Zuckerberg e me consolou:

- Samir, não te aflijas. Ninguém morre de verdade enquanto sobreviver o perfil de seu Facebook!

Fez-se a luz na minha mente. Tudo o que poderia ter sido e não fui pode vir a se tornar realidade nas páginas do Facebook.

Decerto que não terei o túmulo visitado por hordas em romaria, nem farei a felicidade das floriculturas das redondezas.

Mas isto não importa.

A pior das realidades é ainda preferível à maior e mais dourada das fantasias” (nota de copyright: podem me citar livremente, desde que façam referência à fonte. Ainda porque se não o fizerem o que farei? Visitarei tua casa e puxarei teus lençóis à noite? Até mesmo, também, porque não sei se isto eu pensei ou lembrei de ter lido em algum lugar).

Embora ofereça este meu “mausoléu” como caminho para o avatar em que me tornei, não sei se poderei atender às solicitações de amizade, já que não li as letras miúdas dos Termos de Uso e Privacidade para saber se morto pode ter amigos no Facebook.

Mas podem me curtir, eu acho. Ou não, se de verdade não curtiram.

O bom de não estar nas estatísticas oficiais da população bilionária deste planeta é não ter mais que fingir gentileza.

Chega de verniz social. Se gostaram, gostaram. Se não, legal, sigam em paz, e “não entre na Luz, Carol Ann, não entre na Luz”. Quem não me curte não é bem-vindo nestas redondezas.

Fico hoje por aqui, já que o canal de transcomunicação mediúnica cibernética tem banda limitada. Mais que isso a operadora me cobra taxa adicional.

Até outro dia. Ou até a Eternidade, quem sabe!?

Mãe e Filha

Carta Para Uma Amiga 

(ou Mãe e Filha)

Parabéns para a Larissa.  
Espero que um dia ela cole grau em Medicina e se especialize em Geriatria. Sou um paciente certo.
E para não fugir ao estereótipo de velho rabugento,  quando ela me aconselhar boa alimentação,  um pouco de exercício e só tomar os remédios que ela prescrever,  eu vou protestar:
- Olhe, "doutorinha", te conheço desde que você estava na barriga de sua mãe,  não venha agora querer me ensinar como devo viver.
E então,  paciente e com um sorriso,  ela responderá:
- Olhe,  seu Dimas,  é verdade que o Sr. já viveu muito mais que eu.  Mas acontece que os médicos mais "experientes" que o Sr. já estão todos no Céu.  Se o Sr. não me ouvir vai acabar se consultando com eles.  Lá no Céu.  Então,  me ouve um pouquinho.
Eu sorrirei e direi:
- Mas, pelo menos um cálice de vinho do Porto posso tomar de vez em quando?
Ela abrirá um sorriso largo e entre gargalhadas dirá:
- Está bem.  Se nem a minha mãe consegui convencer a se afastar do vinho,  deixo a Sr. também. Mas um pouquinho e de vez em quando.
Riremos uma risada gostosa e vou ver no sorriso e nos olhos dela a minha amiga moleca e feliz dos tempos de hoje.
Deus a abençoe.

segunda-feira, 7 de maio de 2018

O Pungente Fim de Sir Leaflost


“Naqueles dias, quem soubesse ler no céu o passar das estações saberia que nosso mundo, na sua eterna peregrinação em torno da estrela solar, fazia pouco tempo ultrapassara o equinócio de primavera.”

Este pensamento sussurrado pelo vento trouxera para os lábios do solitário cavaleiro um breve sorriso.

“Peregrinação em torno da estrela solar”, quem nos dias em que agora vivia ainda falaria desta forma? Há muito o gosto pelas letras, pelas frases bem construídas, pela poesia diluída no ritmo da frase, abandonara a cultura do povo.

A névoa da madrugada, na primavera ainda nascente, não se dissipara e já o velho corcel descia a encosta do morro, ladeando os Muros de Adriano e trazendo no lombo um perfeito exemplo da decrepitude que alcança o ser humano na velhice.

O cavaleiro se envolvia em largo manto da cor do musgo velho e encimado por um capuz que encobria por completo a face do homem, mantendo-a mergulhada na sombra e protegida dos olhares de qualquer alma que porventura já houvesse acordado naquela hora.




As ruínas do Muro que outrora tinha proporções de assombrar os passantes, obra do
admirável imperador romano para proteger a fronteira norte do império contra os encarniçados bretões, constituíam já naqueles dias tristes lembranças de um passado de glórias.

Conforme o cavalo trotava, um ouvido atento poderia distinguir o tinir de uma cota de malha que por debaixo da capa ainda guarnecia o torso do cavaleiro. Uma das lembranças que lhe restara dos tempos de juventude.


Era ele próprio agora quase que um espectro do antigo Cavaleiro garboso e valente.


Fitando os restos do Muro, aquele resto de homem rememorava os dias em que junto a outros mancebos destemidos e alegres formaram a guarda de elite do Principado.


Joelhos no chão, cabeça baixa, receberam nos ombros os três toques de espada que os consagrariam na Ordem dos Cavaleiros, sob a proteção de São Jorge.


O Velho Código era ainda seu norte, sua lei, sua profissão de fé:

“Um cavaleiro jura bravura.
Seu coração só tem virtudes.
Sua espada defende o oprimido.
Seu poder apóia os fracos.
Sua palavra só fala a verdade.
Sua fúria destrói a maldade."

Inúmeras batalhas conheceu. Inúmeros corpos foram tocados por sua espada vigorosa. Inúmeras muralhas foram transpostas. Incontáveis noites de gemidos e lamentos foram vividas.


Não possuía agora familiares, todos mortos nas lutas entre os baronatos contra e a favor da destituição do Principado.


O nome Leaflost foi um dia símbolo de dignidade e honradez. Agora era só mais um nome dentre os nomes de muitas famílias destruídas e relegadas ao esquecimento. Seu primeiro nome, Farfaith, nem mesmo ele pronunciava há décadas.


As terras que possuíram foram tomadas e o brasão que encimou os estandartes de muitas gerações de Cavaleiros familiares, justos, jazia agora enterrado tão fundo que nem mesmo ele poderia localizar tal sítio funéreo.

A armadura reluzente fora vendida a ferreiros para lhe garantir um naco de pão vez por outra. A montaria que agora utilizava não era o mesmo audaz garanhão, já derrotado pelos anos. Mas o melhor que conseguira em troca do arranhado escudo com estampas em prata. Era o nobre animal tão velho quanto o dono, mas igualmente valente.


Do passado de honras, tudo o que lhe sobrara foram a cota de malha que ainda trajava, a espada habilmente envolta em tecidos e dissimulada dentre os apetrechos dependurados à sela e as lembranças que, além de tudo, lhe assombravam como um fantasma de riso estridente a tripudiar sobre sua bancarrota.

Com o fim das guerras nacionalistas e a destruição do Principado em favor de um reino unificado, mesmo que sob a tirania de déspotas constituídos reis, vira chegar os anos de trevas e despedira-se dos poucos amigos que jamais voltaria a encontrar e se impusera como encargo final a missão extrema que a dezenas de outros Cavaleiros roubara a vida ou a lucidez: encontrar o Graal, o objeto lendário que diziam faria restaurar o poder de honradez e virtude dos tempos antigos.


Vivera esquecido e infatigável por longos anos fiel à sua missão. Até que se dissipou no peito o ardor. Não obtivera sucesso.


No entanto, já no inverno que agora abandonava aquelas terras, cansado e sem esperanças soubera de uma última pista sobre o paradeiro do Graal quando dormia pelas ruas em Fornnville.




Ouvira de viajantes de roupas coloridas que ao norte, para além do velho Muro, havia uma floresta protegida pelas almas de antigos sacerdotes druidas. E bem no meio dessa floresta, ao lado de um carvalho antigo como o próprio mundo, dissimulada pelas raízes da nobre árvore, encontrava-se a entrada de um santuário subterrâneo.


Mas ainda que encontrasse tal lugar, o que diziam ser impossível sem ajuda de quem muito conhecesse as velhas tradições, dificilmente chegaria até o objeto sagrado.


Três portais separavam o santuário principal do Sanctum Sanctorum, o local onde repousa o Graal. Cada um guardado por um espectro de grande poder e majestade.


Por três provas deveria o aventureiro passar. Mas não eram provas que se pudessem realizar, eram provas de virtudes do que já vivera. Assim, não importa quanto tentasse se mostrar agora à altura, pois os guardiães sabiam ler a alma e conhecer o coração e o passado de cada um. E convenhamos, diziam, nenhum vivente passaria por tais provas pois já não existem homens de tal estirpe.


Mesmo que sentindo a vida se esvair, decidiu-se o antigo nobre por uma derradeira tentativa.


Por isso chegara até ali, no âmago da Bretanha, palco de tantas guerras sangrentas. Movido por secreta esperança de não ter vivido em vão.


Já não importava que poder teria o Graal sobre a política e sobre os reinos da Terra.


Queria o Cavaleiro justificativa, algo que desse sentido o tudo que viveu. Que lhe mostrasse que não desperdiçara toda a existência. Que lhe trouxesse, enfim, redenção e perdão para a alma cansada. E que pudesse assim descansar a cabeça sobre as raízes de uma árvore qualquer e morrer em paz.


Ansiava o Graal mais que tudo. Necessitava dele.


Vencida a encosta do morro, alcançara um riacho donde podia divisar, não muito longe, vetusta floresta de árvores velhas e cores mortas.


Desceu da montaria para dar ao animal algum descanso e permitir-lhe beber da água limpa do formoso regato. Ele mesmo ajoelhou-se e com as mãos em concha tomou para si um pouco da água fria e derramou sobre a cabeça. Era um banho e um batismo. Precisava “limpar o corpo dos rigores da vida e a alma do cansaço da existência”, pensou.


Atravessou o riacho e livrou o cavalo da carga que o oprimia. Deixou-o solto para o alimento na relva próxima. Abundante. Enquanto para si tomava os últimos pedaços de pão e peixe defumado.


"A última refeição", pensava. Era tudo ou nada. Adentraria a floresta e de lá não sairia. Tinha certeza. Mas tal era um pensamento que não lhe incomodava. Não temia a morte quando jovem e podia imaginar um futuro de paz e felicidade, porque a temeria agora?


Noutros tempos lhe animava a convicção que vivendo dignamente encontraria na morte a porta para o Reino de Luz do Criador. Agora, todavia, ansiava pela Ceifadora para trazer silêncio e esquecimento à alma desiludida.


Se dormiria a eternidade de coração justificado ou se atormentaria nos rigores dos remorsos pelas eras sem conta, tais eram os caminhos que encontrava neste momento de bifurcação no curso de sua história pessoal.


Consumidas as últimas migalhas, despiu-se e banhou-se. Tomou sobre si roupas limpas trazidas na algibeira e derramou sobre o corpo pela última vez a cota de malha. Resgatou a espada do repouso em que se encontrava e atou-a à cintura.


A sela e os poucos pertences depositou-os sobre a pedra. Que servissem a outro já que deles não mais necessitaria.


Afagou o corcel e julgou entrever em seus olhos um laivo de humanidade. Um brilho de reconhecimento pelo que estava prestes a tentar. Murmurou:


- Bom e velho companheiro, te devolvo a liberdade. Vai e escolhe um lugar para morreres em paz. Tens a minha benção e a minha gratidão. Eu te pediria o mesmo, se não fosses um animal. Mas tens sido para mim nos últimos anos amigo tão fiel, que te levarei no peito como uma lembrança das coisas que valeram a pena ter vivido. Vai e descansa.


Dois pequenos tapas no lombo do animal e este colocou-se em trote ritmado acompanhando o curso do riacho, sem olhar para trás.


“Comprendeu-me”, pensou o velho Cavaleiro algo que renascido.


Voltou-se para a floresta e sem titubear entrou na semi-escuridão formada pelas altas e frondosas copas das árvores.


De lá nunca mais saiu.


Correm lendas sobre o que aconteceu depois. Mas são lendas. E quem nos dias de hoje acredita em lendas?